Salvador Allende, o
Fiel - 40 anos do golpe // Por Demilson Fortes
Embora a multidão nas
ruas de Santiago gritasse em coro “Allende, Allende, o povo te
defende”, não foi o suficiente para impedir o terror. Há 40 anos,
a força bruta venceu a vontade do povo e a democracia. Com armas,
tanques, aviões, os militares conservadores - e traidores -,
associados com setores patronais e o governo dos Estados Unidos,
deram um golpe de Estado. Conseguiram calar vozes e interromper um
dos mais vigorosos e belos processos de transformação social da
história.
O dia 11 de setembro de
1973 foi dramático para a esquerda chilena. O Chile quebrava a
construção de um governo popular e uma tradição democrática de
mais de um século. A ideia de igualdade, de partilhar a terra, de
operários participarem da gestão das fábricas, de erradicar o
analfabetismo e garantir educação e saúde para todos foi demais
para a elite chilena. Era muita democracia.
O golpe militar pôs
fim ao governo democrático e constitucional do presidente Salvador
Allende. O que transcorreu após o golpe foi um massacre tanto contra
seus partidários como para os lutadores sociais, lideranças
populares, revolucionários, reformistas e democratas no Chile, que
sentiram na própria carne a violência e o terror da direita. Foram
perseguidos, presos, torturados e assassinados. Campos de tortura
foram montados e opositores mortos, alguns foram lançados ao mar. O
Estádio Nacional, local de alegrias e mobilizações, no golpe
tornou-se um espaço de terror, palco da violência covarde contra
gente desarmada, boa parte deles constituída de jovens sonhadores,
que dedicavam parte da vida para a coletividade. Era interrompido ali
o sonho de construir um Chile de igualdade e liberdade.
Nos anos 60, a esquerda
latino-americana esteve ligada a uma ideia de guerrilhas, de tomada
do poder pelas armas, a exemplo de Cuba, da tentativa de Che Guevara
na Bolívia e de outras organizações. Salvador Allende quebrava um
paradigma, defendendo a construção do socialismo por outra via,
pelas urnas, por meio de eleições e mobilização do povo. Allende
rompia também com o estilo tradicional dos políticos.
No Chile do início dos
anos 70, produziu-se um movimento popular gigantesco. “Era como se
o país estivesse apaixonado”, “Processos sociais que unem as
pessoas assim só acontecem de 100 em 100 anos”, definiu o cineasta
Patricio Guzman, que foi testemunha e documentou em vídeo esse
extraordinário período histórico. No Chile de Allende “a
história foi acelerada”. “Tem-se a impressão de tocar o
processo social”, disse Guzman.
Estavam em curso
mudanças profundas na sociedade chilena, por via democrática e
pacífica. O líder cubano Fidel Castro, na época, em visita ao
Chile, afirmou tratar-se de “um processo único, insólito,
praticamente o primeiro da humanidade”.
Até então senador, o
médico de formação, procedente da região de Valparaiso, Allende
era um líder autêntico, que aglutinava pessoas e tinha uma
capacidade enorme de comunicação. Quem conviveu com ele conta que
era um homem culto e cordial. O próprio embaixador dos Estados
Unidos reconhecia estas características no líder socialista.
Socialista de uma
tradição libertária, tinha profundas convicções democráticas,
acreditava na ideia da igualdade, da superação da pobreza e da
capacidade dos trabalhadores se auto-organizarem e fazerem história.
Acreditava que socialismo e liberdades eram compatíveis e possíveis.
Para Allende, o povo chileno tinha o direito de construir um caminho
autônomo de soberania e democracia com igualdade social. Conhecedor
do pensamento marxista, suas influências políticas teóricas iam
bem além. Elegeu-se presidente no dia 4 de setembro de 1970, em sua
quarta tentativa. Uma construção de muitos anos.
Salvador Allende, do
Partido Socialista, foi eleito por uma coalização de esquerda, a
Unidade Popular, que aglutinava um conjunto de forças políticas com
destaque para os socialistas e comunistas, mas também com
participação de cristãos de esquerda, social-democratas e outros
grupos de esquerda. “Sou um lutador social que cumpro uma tarefa”,
dizia Allende.
O programa da Unidade
Popular era ousado. E revolucionário. Propunha, entre outras ações,
nacionalizar as riquezas minerais: cobre, ferro, salitre e carvão.
As transformações seriam em todas as áreas - reforma agrária,
reforma educacional, moradias para a população, saúde pública,
cultura etc. O núcleo da economia seria nacionalizado e estatizado.
Os trabalhadores participariam na gestão das fábricas, se abriria
um novo horizonte de poder.
Salvador Allende venceu
as eleições com 36,2% dos votos. Milhares de pessoas foram às ruas
comemorar o momento histórico. No entanto, ele não obteve maioria
dos votos e teve que ser confirmado pelo Congresso. Assumiu o
governo, mas não tinha o poder. No governo, o projeto da Unidade
Popular, radicalmente transformador, foi colocado em curso, mas em um
país com instituições conservadoras, que logo mesmo antes de
assumir já aparecia a oposição e as articulações dos Estados
Unidos. Com minoria no Parlamento, Judiciário tradicional e mídia
conservadora controlada por setores da oposição e classe patronal
organizada, foi muito difícil governar. A oposição não deu
trégua. O governo viveu crises.
Os problemas era
internos e externos. Os Estados Unidos atuaram, desde o início, para
desestabilizar o governo, boicotando-o e apoiando a oposição ao
governo e ajudou a tramar o golpe, como testemunhou Edward Korry,
embaixador norte-americano na época. Richard Nixon falava com ódio
de Salvador Allende e estava determinado a derrubá-lo e a derrotar o
governo socialista. Korry relata que, em uma reunião, presenciou
Nixon golpeando uma mão sobre a outra, num gesto de esmagar Allende
e usando palavras ofensivas ao se referir ao presidente chileno.
Por sua vez, a oposição
apostou no desgaste e no caos e fez de tudo para inviabilizar o
governo da Unidade Popular. Boicotava sistematicamente as iniciativas
do governo. Provocou muitas derrotas do governo no Congresso,
destituiu ministros e funcionários do governo. Foram sete ministros
destituídos em três meses pelo Legislativo, que tentou derrubar
todos (um total de quinze) para atingir o presidente Allende. A
reforma educacional foi barrada. Mas, o Congresso queria mesmo era
ter pretexto para impedir o presidente, só não o fez porque não
conseguiu obter número de representantes necessários nas eleições
paramentares. Alguns setores da oposição fizeram provocações
constantes, ações violentas contras pessoas e contra o patrimônio.
Grupos terroristas fascistas cresciam e eram tolerados e até
incentivados pela oposição e pelos Estados Unidos.
O governo sofria
oposição política, mas também da classe patronal - empresarial,
comercial e rural -, que apostou muito no desabastecimento do país,
fator econômico fundamental à população e para mover a economia.
Pelas medidas tomadas, muitas importações foram prejudicadas. O
país precisava efetivar o comércio internacional e obter divisas
para comprar itens importantes, como medicamentos, combustíveis,
alimentos, máquinas, peças, tecnologia, matérias-primas, insumos,
entre outros. No entanto, a direita estava decidida, tinha
estratégia, queria desorganizar o abastecimento, esgotar estoques e
sabotar a produção. Tudo era válido para derrotar o governo
popular.
Um dos fatores
decisivos para desestabilizar o governo da Unidade Popular foram as
greves dos transportadores, setor estratégico para a mobilidade de
pessoas e à produção de um país. Numa delas, em outubro de 1972,
70% dos ônibus de Santiago pararam. Trabalhadores improvisaram,
foram ao trabalho em caminhões, tratores, veículos de tração
animal.
Em outra greve,
decisiva para instaurar o desabastecimento, financiada diretamente
pelos Estados Unidos, os caminhões pararam de transportar a
produção, afetando os estoques e a distribuição. A corporação
de transportadores paralisou milhares de caminhões e ônibus.
Faltaram combustíveis e peças.
Entidades da classe
patronal, meios de comunicação e parte importante da classe média
chilena, apoiaram os grevistas. Mas os trabalhadores criaram lojas de
abastecimento popular e comissões de bairros para enfrentar a
escassez. Em todas as tentativas de desgastar o governo, o povo se
organizava e dava respostas. A população mais pobre e os
trabalhadores estavam com o presidente Allende.
Embora com embargos,
boicotes, oposição ferrenha, ação dos Estados Unidos, o governo
Allende avançava. Colocava em prática o programa que o povo elegeu.
Apesar da crise, a Unidade Popular aumentou o apoio nas eleições
parlamentares e frustrou a oposição, que não obteve base
suficiente para impedi-lo de governar.
O Partido Democrata
Cristão, na oposição, se negou a colaborar em vários momentos que
o presidente Allende buscou o diálogo para acordo mínimo, mesmo
sabendo que a democracia estava em perigo. Os políticos chilenos de
centro, que se diziam democratas, fizeram alianças à direita e
apostaram no caos para derrotar a Unidade Popular. O presidente, para
contornar a crise, chamou militares para compor o governo. Entre eles
estava Augusto Pinochet, general traidor que liderou o golpe e foi
ditador por 17 anos.
Para piorar a situação,
setores dos trabalhadores de minas de cobre fizeram greve por aumento
salarial. Mineiros de “El Teniente”, que respondiam por parte
significativa das divisas do Chile, pararam, afetando a produção e
a economia chilena. Os mineiros não conseguiram ver o país no todo,
o que ocorria no Chile, o contexto social e político, a crise e os
riscos para a democracia. Faltou à categoria a visão de classe
social e de futuro. A corporação e os ganhos individuais imediatos
pesaram mais. Isso contribuiu para desgastar o governo.
Além disso, a coalizão
de esquerda que sustentava o presidente Allende tinha as suas
divisões internas. Alguns apostavam na radicalização, outros na
via mais moderada. Havia avaliação equivocada de setores mais
extremistas de esquerda, que, em meio à paixão da causa e
enfrentamento de classes, não conseguiram ver os riscos por que
passava o país e os limites que a conjuntura apresentava ao governo.
Mas, o certo que a base social tensionava por mudanças e colocava o
governo em difícil situação.
Os meios de comunicação
chilenos, dominados pela oposição, ajudaram a desestabilizar o
governo popular. As Forças Armadas, treinadas nos Estados Unidos,
traíram o presidente e seus próprios integrantes, pois os militares
que defendiam a Constituição foram assassinados. Da mesma forma,
líderes empresariais faziam cursos com instituições
norte-americanas, financiados pela CIA. Tinha-se no país, portanto,
estruturas conservadoras organizadas, de comunicação, empresarial e
militar, com vínculos e compromissos ideológicos estreitamente
ligados aos interesses dos Estados Unidos. Isso deu base estrutural e
doutrinária para o golpe.
Até a madrugada de 11
de setembro de 1973, o Chile tinha um líder democrático, utopia,
sonhos, operários organizados nas fábricas e o povo na rua. Mas, em
seguida, estava derrotado e desmobilizado. Seguiram-se longos anos de
uma ditadura covarde e cruel, que sufocou liberdades, silenciou o
pensamento crítico, torturou e matou seus opositores. De uma
ditadura que privatizou o país. Regime violento que se impôs pela
força e pelo medo. Em 2011, o relatório da Comissão da Verdade
(Comissão Valech) informou que foram mais de 40 mil vítimas da
ditadura de Pinochet, entre mortos, desaparecidos e torturados. Mas,
alguns estimam ser bem maior o número de vítimas.
As intervenções do
presidente Salvador Allende nunca deixaram dúvidas do seu
compromisso com a transformação, mas também com as liberdades. Em
uma delas afirmou: “Uma revolução por uma via distinta, de acordo
com nossa história, tradição e realidade. Espero que sejamos
capazes de escrever uma página a mais para mostrar que o Chile tem
sua própria vontade criadora”.
Na crise aguda, ouvindo
gritos sugerindo fechar o Congresso, ele respondeu para a multidão:
“Não vou fechar o Congresso”, justificando que queria para o
Chile uma sociedade “pluralista, de democracia e liberdade”. “Se
necessário, enviarei projeto sobre plebiscito para o povo decidir
sobre a situação”, indicou. Tanto que, três meses antes do
golpe, Allende foi ao parlamento e reafirmou seu compromisso com a
legalidade e com a transição pacífica e democrática para o
socialismo. O presidente pretendia propor um plebiscito para a
população decidir o futuro do país, mas, infelizmente, não teve a
chance.
Ficou um vazio de povo.
Ficou a ausência de Salvador Allende. A esquerda latino-americana
perdeu um líder insubstituível. Para os derrotados, indignação,
dor, perdas e impotência. O mundo perdeu a possibilidade de uma
experiência de transição ao socialismo com democracia e liberdades
plenas. Um tempo irrecuperável.
No 11 de setembro de
1973, foi derrotado um país em que o sonho, a alegria, o entusiasmo
coletivo e o extraordinário se materializaram nas esquinas, ruas,
praças, escolas, vilarejos e fábricas. O futuro já não pertencia
mais a todos. Poucos meses antes do golpe, houve a maior manifestação
da história do Chile até aquele momento, mais de meio milhão de
pessoas foram as ruas manifestar apoio ao seu presidente, chegavam de
todos os lados. Foram a pé, de bicicletas, de ônibus, de carroças
ou de tratores. Nada foi suficiente para impedir o golpe. Venceu a
barbárie.
O Chile do governo da
Unidade Popular tinha uma população mobilizada, porém, sem armas.
“A lealdade do povo, responderei com a lealdade de um militante
socialista”, afirmou Allende, em uma das suas falas, para a
multidão, que o escutava, .O socialista Salvador Allende foi fiel,
até o fim.
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