Antonio Lassance - Especial para Carta Maior
Em tempos de desordem financeira, os Estados Unidos assistiram a um grande aumento de sua desigualdade social, a partir da crise de 2008 e 2009. O reflexo mais dramático dessa queda ladeira abaixo foi o crescimento da miséria, da insegurança alimentar e da própria fome.
Em 2008, houve um crescimento de 40% no número de pessoas em situação de elevada insegurança alimentar. O contingente de cerca de 6,7 milhões de lares corresponde a algo em torno de 5,7% da população. Pode parecer pequeno, mas o aumento foi o maior dos últimos 15 anos (dados do Census Bureau, 2010). Some-se a este contingente mais 23,5% de lares que vivem em insegurança alimentar em menor escala, mas mesmo assim são afetados. Ao todo, de cada 10 famílias, quase 3 estão em condição de pobreza e correm o risco de não ter o suficiente para se alimentar.
Em 2007, havia 37.3 milhões de americanos pobres. Em 2008, o número saltou para 39,8 milhões (13,2% da população). Em 2009, atingiu 43,6 milhões (14,3%). É mais que um Sudão, mas até agora ninguém apareceu com aquele tipo de ironia tantas vezes usada no Brasil, que já foi apelidado de Belíndia (mistura da Bélgica em que viviam alguns, em contraste com a Índia para a maioria - numa época em que ser Bélgica parecia mais promissor, o que não é mais o caso) ou de Ingana (os ricos viviam numa Inglaterra, mas a maioria, numa Gana). Abrigar um contingente de pobres do tamanho de um Sudão, imagina-se, transformaria os USA num Usadão.
Ainda conforme dados do Census Bureau, uma em cada 5 crianças vive na pobreza, metade delas na miséria.
As faixas de maior incidência de pobreza têm origem hispânica, seguida dos negros, mas a queda mais abrupta verificada após a crise se deu entre os brancos. Eram pessoas da classe média que, repentinamente, viram-se no olho do furacão da crise financeira de 2008-2009, perderam suas casas, seus empregos, seu padrão de vida e passaram a viver sob condições precárias. Gente que nunca esteve em situação tão crítica.
O impacto psicológico e político de tal desgraça social é fermento para pregações que, na melhor das hipóteses, falam em resgatar a classe média. Todavia, tem crescido, e muito, o bombardeio ideológico dos apóstolos do modo de vida tradicional americano. São aqueles que defendem a volta de um país que se foi - na verdade, que nunca existiu, a não ser para uma minoria. Um saudosismo de “E o vento levou”, orgulhoso de suas raízes nativas e de um passado mitificado.
O reacionarismo da ultradireita estadunidense se nutre do escárnio aos imigrantes; do ódio aos que chegaram para realizar trabalhos desprezados e mal remunerados; da repulsa aos que, muitas vezes, fugiram de seus países na tentativa de escapar das consequências de crises sistêmicas do capitalismo, ou de guerras cuja extrema pobreza de seus combatentes sempre contrastou com o exímio poderio armado pago com ouro, diamantes, petróleo.
A crise agravou, mas não criou a decadência do padrão de vida dos americanos. Uma longa transformação estrutural tem levado alguns de seus ícones à bancarrota ou a sérias dificuldades. Foi o caso, em várias ocasiões, das montadoras Chrysler, GM e Ford; e de algumas instituições financeiras tradicionais, como o Bank of America, o Citibank e daquela que se tornou o símbolo da crise, a holding sesquicentenária Lehman Brothers. Uma parte da economia americana desapareceu. Outra parte mudou-se para a China, a Índia, a Malásia. A tão propalada globalização, que afetou tantos países pobres e em desenvolvimento, também fez seu estrago dentro dos EUA.
Mas existe um ingrediente essencialmente político na decadência americana. Há pelo menos 30 anos, o padrão de vida norte-americano vem caindo de maneira consistente. No livro “Democracia desigual: a economia política da nova era dourada” (“Unequal democracy: the political economy of the new gilded age”), o cientista político Larry Bartels, da Universidade de Princeton, mostra que a pobreza tem aumentado mais, e a desigualdade, muito mais, durante os governos republicanos. Com os democratas, o prejuízo é menor, embora insuficiente para reverter a tendência pavimentada por seus adversários.
Bartels atribui às políticas econômicas adotadas um grande peso no aprofundamento do abismo entre os absurdamente ricos e os absolutamente pobres. O professor analisa a velha e reiterada fábula dos republicanos sobre as benesses que adviriam ao se diminuir drasticamente a carga de impostos dos muito ricos e suas empresas. A promessa é que, ao permitir a supercapitalização dos grandes agentes econômicos, estes propiciariam a criação de milhões de novos empregos. Ao contrário, os dados permitem verificar, em diferentes períodos, que os republicanos venderam e não entregaram o que apregoavam.
Outra referência que vai na mesma linha são os professores Jacob Hacker e Paul Pierson, autores de “A política onde o vencedor leva tudo: como Washington tornou os ricos mais ricos e virou as costas para a classe média” (“Winner-take-all politics: how Washington made the rich richer - and turned its back on the middle class”).
Nos últimos 30 anos, a distância entre ricos e pobres aumentou. Normalmente, os acusados são apenas suspeitos externos ou intangíveis - digamos, por exemplo, o senhor Comércio Exterior, a senhora Globalização Financeira, a madrasta Mudança Tecnológica, mais recentemente, uma malvada que atende pelo nome de China. Pois bem, segundo os autores, o responsável direto pelo problema tem nome e endereço. É filiado a um dos dois grandes partidos e pode ser encontrado em Washington. Responde pela política e pelas políticas públicas.
A política não cria ricos e pobres, mas tem defendido com unhas e dentes quem menos precisa, quem tem mais recursos, deixando os pobres e a classe média em desamparo.
Em 2008, houve um crescimento de 40% no número de pessoas em situação de elevada insegurança alimentar. O contingente de cerca de 6,7 milhões de lares corresponde a algo em torno de 5,7% da população. Pode parecer pequeno, mas o aumento foi o maior dos últimos 15 anos (dados do Census Bureau, 2010). Some-se a este contingente mais 23,5% de lares que vivem em insegurança alimentar em menor escala, mas mesmo assim são afetados. Ao todo, de cada 10 famílias, quase 3 estão em condição de pobreza e correm o risco de não ter o suficiente para se alimentar.
Em 2007, havia 37.3 milhões de americanos pobres. Em 2008, o número saltou para 39,8 milhões (13,2% da população). Em 2009, atingiu 43,6 milhões (14,3%). É mais que um Sudão, mas até agora ninguém apareceu com aquele tipo de ironia tantas vezes usada no Brasil, que já foi apelidado de Belíndia (mistura da Bélgica em que viviam alguns, em contraste com a Índia para a maioria - numa época em que ser Bélgica parecia mais promissor, o que não é mais o caso) ou de Ingana (os ricos viviam numa Inglaterra, mas a maioria, numa Gana). Abrigar um contingente de pobres do tamanho de um Sudão, imagina-se, transformaria os USA num Usadão.
Ainda conforme dados do Census Bureau, uma em cada 5 crianças vive na pobreza, metade delas na miséria.
As faixas de maior incidência de pobreza têm origem hispânica, seguida dos negros, mas a queda mais abrupta verificada após a crise se deu entre os brancos. Eram pessoas da classe média que, repentinamente, viram-se no olho do furacão da crise financeira de 2008-2009, perderam suas casas, seus empregos, seu padrão de vida e passaram a viver sob condições precárias. Gente que nunca esteve em situação tão crítica.
O impacto psicológico e político de tal desgraça social é fermento para pregações que, na melhor das hipóteses, falam em resgatar a classe média. Todavia, tem crescido, e muito, o bombardeio ideológico dos apóstolos do modo de vida tradicional americano. São aqueles que defendem a volta de um país que se foi - na verdade, que nunca existiu, a não ser para uma minoria. Um saudosismo de “E o vento levou”, orgulhoso de suas raízes nativas e de um passado mitificado.
O reacionarismo da ultradireita estadunidense se nutre do escárnio aos imigrantes; do ódio aos que chegaram para realizar trabalhos desprezados e mal remunerados; da repulsa aos que, muitas vezes, fugiram de seus países na tentativa de escapar das consequências de crises sistêmicas do capitalismo, ou de guerras cuja extrema pobreza de seus combatentes sempre contrastou com o exímio poderio armado pago com ouro, diamantes, petróleo.
A crise agravou, mas não criou a decadência do padrão de vida dos americanos. Uma longa transformação estrutural tem levado alguns de seus ícones à bancarrota ou a sérias dificuldades. Foi o caso, em várias ocasiões, das montadoras Chrysler, GM e Ford; e de algumas instituições financeiras tradicionais, como o Bank of America, o Citibank e daquela que se tornou o símbolo da crise, a holding sesquicentenária Lehman Brothers. Uma parte da economia americana desapareceu. Outra parte mudou-se para a China, a Índia, a Malásia. A tão propalada globalização, que afetou tantos países pobres e em desenvolvimento, também fez seu estrago dentro dos EUA.
Mas existe um ingrediente essencialmente político na decadência americana. Há pelo menos 30 anos, o padrão de vida norte-americano vem caindo de maneira consistente. No livro “Democracia desigual: a economia política da nova era dourada” (“Unequal democracy: the political economy of the new gilded age”), o cientista político Larry Bartels, da Universidade de Princeton, mostra que a pobreza tem aumentado mais, e a desigualdade, muito mais, durante os governos republicanos. Com os democratas, o prejuízo é menor, embora insuficiente para reverter a tendência pavimentada por seus adversários.
Bartels atribui às políticas econômicas adotadas um grande peso no aprofundamento do abismo entre os absurdamente ricos e os absolutamente pobres. O professor analisa a velha e reiterada fábula dos republicanos sobre as benesses que adviriam ao se diminuir drasticamente a carga de impostos dos muito ricos e suas empresas. A promessa é que, ao permitir a supercapitalização dos grandes agentes econômicos, estes propiciariam a criação de milhões de novos empregos. Ao contrário, os dados permitem verificar, em diferentes períodos, que os republicanos venderam e não entregaram o que apregoavam.
Outra referência que vai na mesma linha são os professores Jacob Hacker e Paul Pierson, autores de “A política onde o vencedor leva tudo: como Washington tornou os ricos mais ricos e virou as costas para a classe média” (“Winner-take-all politics: how Washington made the rich richer - and turned its back on the middle class”).
Nos últimos 30 anos, a distância entre ricos e pobres aumentou. Normalmente, os acusados são apenas suspeitos externos ou intangíveis - digamos, por exemplo, o senhor Comércio Exterior, a senhora Globalização Financeira, a madrasta Mudança Tecnológica, mais recentemente, uma malvada que atende pelo nome de China. Pois bem, segundo os autores, o responsável direto pelo problema tem nome e endereço. É filiado a um dos dois grandes partidos e pode ser encontrado em Washington. Responde pela política e pelas políticas públicas.
A política não cria ricos e pobres, mas tem defendido com unhas e dentes quem menos precisa, quem tem mais recursos, deixando os pobres e a classe média em desamparo.
Para Hacker e Pierson, o sistema político nos EUA foi "sequestrado" pelas grandes corporações e pelos grandes financistas. Avaliam que a intensificação desses laços pode ser traçada por volta dos anos 1970 (Governo Nixon). Mesmo as administrações do Partido Democrata não foram capazes de reverter a trajetória conservadora consagrada definitivamente por Reagan e continuada pela família Bush.
A influência do “grande negócio” (“big business”) foi embrulhada para presente por ideólogos conservadores. A grande imprensa a eles confere um tratamento ao estilo Poliana, generosamente apelidando-os de “especialistas” ou “técnicos”, omitindo que muitas de suas conclusões vêm de estudos e pesquisas financiados por corporações privadas. Estas pagam seus salários em “think tanks”, instituições que reúnem pesquisadores diretamente orientados a fazer lobby (ou mesmo “guerra”, para justificar a expressão “tank”) em favor de determinadas políticas públicas, ou que financiam suas consultorias.
Acostumados a um arraigado liberalismo e experimentando um conservadorismo rompante, os americanos são aturdidos com a volta de teses desbotadas e teimosas, como a de que as pessoas são pobres por razões individuais ou culturais. São pobres porque querem, acredite se quiser. Ou simplesmente porque não sabem como livrar-se da miséria. Têm uma cultura da pobreza, caem em armadilhas, por conta própria desestruturam suas vidas, pensam da forma errada. Um artigo do New York Times, meses atrás, registrou o retorno dessa velha e carcomida tese com a euforia de um agora-vai, ou tá-na-hora-dos-“perdedores”-acreditarem-nisso. Algo não muito diferente do que se vê aqui em livros como “A cabeça do brasileiro”, do sociólogo Carlos Alberto Almeida.
Nos EUA, os governos estão refazendo sua cartografia da fome. Só na cidade de Nova York, cerca de 20% das famílias passam por algum tipo de privação. A ong Coalizão Novaiorquina Contra a Fome, que distribui sopa (ao estilo do que fazia o Exército da Salvação, nos anos 30), mas que discute o problema também politicamente, apresenta dados segundo os quais o berço de Wall Street é o lugar com as áreas mais famintas dos EUA. A Senadora do Estado de Nova York, Kirsten Gillibrand (democrata progressista, “pero no mucho”), considera que a cidade passa por uma verdadeira “crise alimentar”.
Enquanto isso, o touro que simboliza Wall Street em seu espírito indomável e antirregulatório guarda as portas de seu moinho satânico não só com seus chifres, mas sobretudo com mão de vaca. Assim, muitos americanos não estão comendo sequer o pão que o diabo amassou. E estão prontos para cometer os erros pelos quais serão condenados a sentirem-se culpados.
(*) Antonio Lassance é pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e professor de Ciência Política. As opiniões expressas neste artigo não refletem necessariamente opiniões do Instituto.
A influência do “grande negócio” (“big business”) foi embrulhada para presente por ideólogos conservadores. A grande imprensa a eles confere um tratamento ao estilo Poliana, generosamente apelidando-os de “especialistas” ou “técnicos”, omitindo que muitas de suas conclusões vêm de estudos e pesquisas financiados por corporações privadas. Estas pagam seus salários em “think tanks”, instituições que reúnem pesquisadores diretamente orientados a fazer lobby (ou mesmo “guerra”, para justificar a expressão “tank”) em favor de determinadas políticas públicas, ou que financiam suas consultorias.
Acostumados a um arraigado liberalismo e experimentando um conservadorismo rompante, os americanos são aturdidos com a volta de teses desbotadas e teimosas, como a de que as pessoas são pobres por razões individuais ou culturais. São pobres porque querem, acredite se quiser. Ou simplesmente porque não sabem como livrar-se da miséria. Têm uma cultura da pobreza, caem em armadilhas, por conta própria desestruturam suas vidas, pensam da forma errada. Um artigo do New York Times, meses atrás, registrou o retorno dessa velha e carcomida tese com a euforia de um agora-vai, ou tá-na-hora-dos-“perdedores”-acreditarem-nisso. Algo não muito diferente do que se vê aqui em livros como “A cabeça do brasileiro”, do sociólogo Carlos Alberto Almeida.
Nos EUA, os governos estão refazendo sua cartografia da fome. Só na cidade de Nova York, cerca de 20% das famílias passam por algum tipo de privação. A ong Coalizão Novaiorquina Contra a Fome, que distribui sopa (ao estilo do que fazia o Exército da Salvação, nos anos 30), mas que discute o problema também politicamente, apresenta dados segundo os quais o berço de Wall Street é o lugar com as áreas mais famintas dos EUA. A Senadora do Estado de Nova York, Kirsten Gillibrand (democrata progressista, “pero no mucho”), considera que a cidade passa por uma verdadeira “crise alimentar”.
Enquanto isso, o touro que simboliza Wall Street em seu espírito indomável e antirregulatório guarda as portas de seu moinho satânico não só com seus chifres, mas sobretudo com mão de vaca. Assim, muitos americanos não estão comendo sequer o pão que o diabo amassou. E estão prontos para cometer os erros pelos quais serão condenados a sentirem-se culpados.
(*) Antonio Lassance é pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e professor de Ciência Política. As opiniões expressas neste artigo não refletem necessariamente opiniões do Instituto.
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